domingo, 7 de novembro de 2010

Tristezazinha

Tenho uma portinha dentro de mim
Pequenina, quase imperceptível
Que nunca foi aberta

Alguém jogou a chave fora
Desfez-se dela
E fez bem

Lá mora uma tristezazinha miúda
que, sentada, chora de noite e de dia
Não tem nada, nem ninguém
Não há quem se lembre dela

Ficou lá, esquecida do mundo
Correu, e encurvada, socou o corpo pequenino
no canto da parede úmida

E já que vive trancada
Não aparece
Mas vez ou outra lança seu olhar amargo
pela fechadura
E sua dor se espalha em mim
Como perfume acre

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Conversação

Olhava para minha boca enquanto eu falava. Nunca gostei que fizessem isso. Era como uma agressão. Era como não me levar a sério. Como querer me beijar de súbito, me invadir.

E era como se colhesse cada palavra de minha boca. Se aproximava de mim, e lia as frases que deslizavam de minha língua. Percebi sua dificuldade pela fala, levemente embargada, e passei a dizer as coisas de forma cada vez mais explicada, flexionando bem os lábios, para que me entendesse melhor.

E era engraçada a maneira como seus olhos saíam dos meus e desciam para minha boca. Me lembrava aquele outro rapaz, o que eu amava. Eu costumava dizer que seu olhar descia e subia escadas, suavemente, varando toda a presença, sondando o ser. Um olhar tímido, de muito recato – e porque não dizer - , elegância. Eu o adorava. Em meio ao burburinho geral, aproximava o ouvido de minha boca, baixava os olhos, os cílios lindos se fechavam levemente, "à mi-clos” - como dizem os franceses -, e me davam a ilusão de que assim ele conseguiria ouvir minha voz.

Essas lembranças do passado atravessaram minha mente, e trouxeram à tona, mais uma vez, a dor do amor mal curado. Tentei afastá-las, como fingir que uma ferida que dói não está doendo. Foi quando me deparei com ele, que me olhava, ainda. “Vou descer na próxima. Até breve, então?” “Até!”, respondi. Me beijou no rosto, e se foi.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Sonho

Caíste. E tua cabeça partiu-se em dois pedaços. Observei, de relance, tua queda, e meu coração ficou atemorizado com a simples ideia de que tua vida poderia ter acabado. Mas apesar do acidente, continuei sentada, tomando meu café, observando que todas iam ao teu encontro. Nessa época eu pensava que sabias de meus sentimentos; por isso o receio de demonstrar meu desespero por teu estado tomou a frente. Não poderia ter deixado transparecer minha simpatia por ti mais do que já havia feito.

Mas, dois dias depois, estavas completamente restabelecido. Quando fui visitar-te, estavas com uma perna apoiada sobre a outra, muito feliz, vestido com uma daquelas camisas brancas que são tua marca inconfundível. Não fumavas. Duas ou três jovens te visitavam, e estavam interessadas em saber como te sentias. Sorrias muito, e tua morenice e teus cabelos acinzentados contrastavam com a alvura de tua camisa. Eu cheguei. Chamei teu nome, tu me viste e, tenho certeza, não te alegraste de imediato com minha presença. Talvez para ser um pouco amistoso, sorriu pra mim, e fez gestos para que eu me aproximasse. Sentei ao teu lado, e comecei a ouvir-te falar sobre tudo e todos. Disseste que metade de tudo, ali, existia graças ao meu tio. Surpreendi-me; pensava que não conhecias mais ninguém de minha família. Levantaste, com um pouco de dificuldade, e me convidaste para seguir-te. Apresentaste-me teu restaurante, de térreo e primeiro andar, inteiro de vidro, muitíssimo iluminado. Senti-me numa estufa; as colunas eram pintadas de verde. Moravas naquele mesmo prédio, e abriste a porta de tua casa para mim. Tudo era muito peculiar, e nada se parecia contigo. Havia três berços. Falaste-me de tuas filhas que estavam por chegar, e eu me senti envergonhada por estar ali, escancarando tua casa e tua vida.

Saímos. Agora íamos dar uma volta por todo o restaurante. Paravas em algumas mesas, cumprimentavas os clientes, brincavas com alguns que te conheciam bem, sorrias. Eu te acompanhava, e nenhuma palavra que dizias a eles me interessava, porque nenhuma era dita a mim. Só os assuntos compartilhados entre nós dois me pareciam suficientemente atraentes e dignos de minha atenção.

Num momento, meus ciúmes por ti vieram até a garganta. Indaguei-te do porquê de amares a tantas, e te perguntei se, para ti, eu era diferente de todas. Falaste que todas te beijavam, te abraçavam, e só eu fugia de ti. Disseste que eu era a única que, quando pressentia tua aproximação, se esquivava, e lembrava de todo o abismo que nos separa. Tive de dizer: “tu chegaste cedo demais, meu anjo, e eu, tão tarde”!

Confessei que minha fuga era verdade, e lembrei-te de que a responsabilidade colocava nossos pés no chão e nos trazia de volta à Terra. Descemos as escadas. Propuseste que saíssemos e passeássemos um pouco pela cidade. Fomos a uma banca próxima. A senhora que vendia os livros - teus amados livros - conversou um pouco contigo, enquanto eu aproveitei para fechar os olhos e tentar segurar minha intensa vontade de chorar. Falaste que podíamos alugar uma bicicleta e sair pelas ruas, olhando os lugares. Não me lembrei de dizer-te que nunca aprendi a andar de bicicleta. Por que tua presença sempre me inebria? Quando estou contigo, me embriago de ti, e não posso ouvir mais nenhuma palavra que não seja a tua. Aceitei o convite. Foste em direção ao local onde se alugavam as bicicletas. Em minhas costas, senti a luz do sol e a chegada do triste momento de deixar-te. Meus olhos, rútilos de saudade, te observavam distanciar-se. Foi quando acordei.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Cidade

Enquanto todos dormem,
ela desperta

E se veste para a festa
Que está só começando

As máquinas vêm e vão
As risadas estridentes ecoam nas ruas estreitas
Pessoas cantam em línguas desconhecidas

Ela está radiante
Em seu belo e decadente vestido de gala
E então me olha com os olhos de ressaca,
convidativos

Mas os paetês caem,
A maquiagem borra,
As cores desbotam
"E agora, José?"

E o levantar do sol
Marca o momento em que ela perde seu sapatinho de cristal
Para vir buscá-lo no dia seguinte,
Como faz incessantemente

Ruiva

A moça vem com um andar insolente
Os cabelos cor de cenoura
Branca de neve
Vestida de preto

É lindo ver o contraste
Entre a pele alva e a veste negra

Eu a conheço de algum outro lugar
E é angustiante saber que a conheço,
mas não me lembro de onde

A impressão procede,
pois ela diz o mesmo
de mim

Serenata

Sonhando que qualquer dia desses
A tuna venha cantar no pé da minha janela

E à moda antiga,
Eu jogue uma flor, ou um lenço
Para retribuir
O galanteio

Travesseiro

Aqui, abraçada ao travesseiro
Lembro da infância
Apanhava, e depois corria pra cama
E chorava
chorava
chorava
E depois dormia

Hoje continuo na mesma
Só que o choro não tem bons fundamentos
Ele corre inutilmente
E não me ajuda mais a dormir